sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Basta atravessar as águas

Ela estava na porta de casa. Era dia de ano novo. Toda de branco, cabelo amarrado em um rabo de cavalo, calcinha vermelha e sutiã rosa, além de duas pulseiras douras. Ela dizia que não era supersticiosa, mas era. Lembrou-se que tinha que voltar e pegar a identidade. Nunca é bom sair de casa sem documento, pensou. Este pensamento nem era muito dela. Sua mãe que sempre falava isso para ela.
            Na porta de casa, antes de sair e depois de pegar o documento, resolveu que ia ligar para sua mãe. Melhor que ligar no meio da festa e não ouvir nada. Sentada olhando para a porta pegou o celular e ligou. Sua mãe rapidamente atendeu, mas ela não sabia muito bem que falar. Será que só um feliz ano novo já seria o suficiente? Feliz ano novo mãe, foi o que ela falou. Do outro lado da linha sua mãe também lhe desejou um feliz ano novo e disse que tivesse juízo, que não bebesse muito e que todos os seus sonhos se realizassem. Ela não sabia muito o que responder. Disse um amem e também falou que não iria beber muito, algo que ela não tinha certeza se iria cumprir. Desligou a ligação e a vontade de chorar veio, mas ela engoliu.
            Novamente foi até a porta, lembrou-se do seu último relacionamento, será que devia ligar para ele? Resolveu que sim, era ano novo, todo mundo fica menos armado. Sentou-se novamente no sofá ,que ficava de frente para a porta, e pegou o telefone. Nesse caso o telefone chamou bastante até ser atendido. Ele atendeu e a voz parecia de alguém um pouco bêbado, ela conhecia muito bem aquela voz. Boa noite, desculpa está ligando assim tão tarde, mas é que como passamos as duas últimas viradas de ano juntos eu não tinha como não lembrar de você: foi o que ela falou. Ele deu uma risada boba ao telefone e desejou para ela um feliz ano novo e que ela fosse muito feliz. Ela desejou feliz ano novo também e desligaram a ligação depois de mais algumas palavras trocadas.
            Novamente foi até a porta e ao chegar lá lembrou-se de mais uma pessoa que devia ligar e mais outra e mais outra e mais outra e mais outra -amigos que se mudaram, amigos que não se mudaram, mas ela havia se mudado, amigos de infância e amigos novos mais que tinham ajudado a aguentar o ano-  ela ligou um por um. Sempre difícil desejar ano para alguém, mas ela se esforçou ao máximo. Depois de tanto ir e voltar ela resolveu que iria ficar sentada no sofá, que ficava de frente para a porta, até ter a certeza de que realmente não tinha mais nada para fazer antes de sair.
            Levantou-se decidia em sair de casa, abriu a porta. 9,8,7,6,5,4,3,2,1.... Da porta viu o céu se rasgar em fogos. Ao ver aquele brilho todo ela começou a chorar compulsivamente. Um choro tão verdadeiro, tão sentido e tão seu. Era um ritual chorar na virada do ano. Voltou até o sofá e deu conta de que o ano tinha realmente virado. Ela tinha tido sua primeira virada do ano sozinha. Dizem que quando você tem sua primeira virada de ano só quer dizer que você amadureceu. Ela não sabia se isso era verdade ou só coisa de sua avó, já falecia, contava só como justificativa sua desvontade em sair na virada de ano.

            Sentada no sofá ,que dava de frente para a porta, lembrou-se que não tinha desejado feliz ano novo para todo mundo. Faltava uma pessoa. Uma pessoa nova em sua vida. Ela ficou até envergonhada em ligar, mas era ano novo, todo mundo adora receber uma ligação. Então sem pensar muito pegou o telefone e ligou. Feliz ano novo, a voz já começou a ligação dizendo isso. Ela ,entre um abrir de sorriso, respondeu: Feliz ano novo.  

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Ouroboros



Eram três e vinte da manhã e ele resolveu escrever esse texto. Ele levantou, tomou uma xícara de chá. Voltou para a cama e começou a digitar. O texto não fluía. A vontade de escrever existia, mas o medo era maio. Medo de que o objeto de sua inspiração se identificasse com o texto e resolvesse reclamar. Então cada linha que ele escrevia duas ele apagava. Isso foi se enrolando por minutos e minutos. E se ele lesse esse texto, será mesmo que ele iria vim falar alguma coisa? Será que iria quebrar o gelo e resolver falar? Ou será que seria pior ainda, que ele iria ler, iria ficar com mais raiva ainda e pararia de vez de falar?

De qualquer modo isso não importa muito. Ele já nem fala mais direito mesmo, então era melhor escrever, ao menos esse texto poderia ficar famoso e, assim, viraria um livro que seria vendido muito e traduzido para vários idiomas. Então estava resolvido, iria escrever o texto, iria publicar um livro, iria vender muito, iria traduzir, ficar rico e famoso e assim ele iria querer falar. Quem não quer sair com alguém famoso? Mas será que iria demorar muito? E se não ficasse famoso, e se ele só ficasse chateado mesmo?

Enfim, então melhor não escrever esse texto sobre eles dois, era melhor escrever outra coisa. Mais que coisa? Levantou e tomou mais um chá. Para tentar pensar em outro tema para escrever resolveu que iria ouvir alguma música, sempre ajudava. Mexendo no computador encontrou algo que queria ouvir: Tiê.

Mas que bosta, não estava ajudando. Então melhor escrever logo esse texto de merda e que se foda se ele entender que aquele texto era sobre eles dois. Pouco importa, eles já não se falavam direito já há alguns dias, se ele não gostar que vás e lascar. Quem mandou sair com artista? Eles sempre usam as referências de suas vidas em suas obras, se saiu devia saber que em algum momento iria virar referência para alguma coisa.

Claro que seria melhor que não fosse esse tipo de texto. Seria melhor que fosse um texto sobre um casal feliz, passando um final de semana na praia e após uma noite de sexo intenso resolviam namorar e tudo seria lindo. Isso sim seria um livro que venderia e seria traduzido para vários idiomas, até filme podia tornar-se.  

Esse texto meio boca que ele iria escrever muito provavelmente seria pouco lido, e com o passar do tempo seria esquecido. Então tudo bem, muito certamente ele não iria lê. Não precisava se preocupar. E se ele lesse, talvez nem achasse que falava deles dois, tendo em vista que a metade da história era realidade e a outra ficção.  Estava decidido, iria escrever.

Eram as três e quarenta da madrugada um autor emocionalmente instável e com uma paixão sem saber se era correspondida estava sentado em sua cama com o computador ligado. Queria escrever um texto sobre aquela relação que estava vivendo, mas tinha medo que o objeto de sua inspiração soubesse que o texto falava sobre eles dois.

Mas que se foda, ele já entendeu que o texto era sobre eles dois. Então tudo bem, melhor assumir. Sim, se você estiver lendo esse texto é sobre nós dois.

Pronto o texto ficou pronto, o computador já podia ser desligado e o autor já podia dormir.  

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Video Games

Ele fechou a porta na minha cara. Não, não foi bem assim, preciso começar novamente esse texto. Ele abriu a porta, olhou para mim, e pediu que eu fosse embora e aí sim fechou a porta na minha cara. Eu, o que fiz? Toquei a campainha. Ele não abria a porta, me olhava pelo olho magico (eu imagino) e falava para eu ir embora. Pedia-me que entendesse e dizia que precisava ficar só.
            Por algum momento, um rápido momento, eu achei que ele ia abrir a porta e me explicar tudo. Ao invés disso ele apenas começou a chorar e disse que iria me ligar, caso soubesse o que falar. Eu então, cansei de ser palhaço de circo falido e resolvi sair. Peguei o primeiro taxi que vi. Nem olhei se tinha dinheiro, mas peguei.
            O taxista me pergunto para onde iriamos. Apenas respondi: para o mais longe possível daqui. Acho que ele entendeu. Sai de lá. Pronto, já estávamos distantes o suficiente. A janela do carro era um refúgio. Olhando para a paisagem, minha mente não tinha tempo de pensar, ela só tentava entender as imagens que rapidamente corriam. Assim eu podia descansar. Comecei a chorar. Secava aquelas lagrimas com tanta força e raiva. Secava, pois eu não queria chorar.
          Senhor, pode parar aqui, nesse ponto do metrô já está ótimo, obrigado e pode ficar com o troco. Desci, coloquei o fone e continuei a andar, não queria pegar o metrô, queria apenas andar. A cidade, as pessoas, a música e a porra dos meus pensamentos. Eu estou cansado, devo parar e tomar uma cerveja, uma garrafa de vinho ou uma dose de gim. Moço me der os três, um de cada vez a ordem você pode escolher, foi o que pedi no primeiro bar que vi a minha frente.
              A cerveja estava quente, o vinho doce demais e o gim era muito vagabundo. Quem é aquele ali? Está olhando para mim? Acho que sim.

                - OI
                -OI
                - Você é bem lindo
                - Obrigado
                - Posso sentar aqui?
                - Sim, estou só mesmo.

                Ele sentou à mesa, se apresentou, falou do meu sotaque. Falamos amenidades. Coisas de sempre. Nome, signo, idade, o que faz da vida, (risadas), (silencio), mora onde?, e esse sotaque? Nos beijamos.
                Sai daqui, sai da minha cabeça, você mandou eu ir embora, não atrapalha o beijo. Não eu não vou mais pensar em você. Sim o beijo está sendo ótimo, só estou pensando em você, pois estou com raiva, mas dá para você sair dos meus pensamentos? Obrigado. Caralho, você não vai sair ne. Ok, vou dispensar o cara, não era esse o combinado?

                -Desculpa, preciso ir.
                -Mas já?
                - Sim, estou cansado e já é tarde.
                - Me diz teu número então!

              Trocamos os números. Acho que ele nem vai me ligar, mas tudo bem. Subi a rua, estava perto de casa. Uma garrafa de vinho (um pouco melhor). Enfim em casa. Sai gato, não estou com paciência para carinho em gato. Deitei na cama. Abri a garrafa. Começo a beber. Ele realmente fechou a porta na minha cara hoje? Serio? Que droga, estou ficando bêbado, não consigo evitar é algo biológico, desculpa.

                Será que estou com sono, ou estou apenas bêbado? A Lana Del Rey cala essa boca. Não, espera, vou repetir a música mais uma vez. Estou com o celular na mão. Na verdade, passei o dia com o celular na mão, ele disse que iria me ligar. Estou esperando. Ele fechou a porta na minha cara e eu ainda não sei o motivo. O celular na está na mão, a garrafa de vinho está quase seca, a Lana Del Rey está tocando novamente e eu já estou bastante bêbado. Podia ser mais chique? Acho que não, mas que se foda é pra ser clique e vai ser.

domingo, 16 de outubro de 2016

Dinâmica



O dia parecia normal, ele havia acordado as 5h da manhã, tomado banho, comido um rápido café e saído para o trabalho. A empresa era sua, mas ele sempre fazia questão de chegar antes de todos os funcionários e sair só ao final do expediente. Já não era mais um rapaz novo e sua empresa já era bastante consolidada no cenário nacional com filiais nas cinco regiões do país. 

Já eram vinte as onde da noite quando resolveu que era hora de sair do trabalho. Pegou seu carro que estava na vaga de presidente e saiu para sua cobertura que dava vista para o mar. Um dia comum. Era o que qualquer pessoa iria pensar se tivesse lhe seguido durante o dia inteiro. 

Já em casa, uma dose de bebida, dois tragos de charuto cubano socialista e um banho. Voltou para sala de 80 metros quadrados e sentou-se na cadeira de 50 mil reais que havia comprado na última bienal de designe. Levantou-se e resolveu abrir a janela. Um pouco de ar natural.

Mais duas doses, mais dos tragos e mais experiência de solidão. Talvez olhar o mar fosse uma forma de aliviar tudo. Levantou-se lentamente, enquanto andava passou pela pesa de centro e percebeu que seu celular estava tocando. Olhou para o visor, mas a decisão de ir até a varanda era maior.
De pé, no vigésimo segundo andar, a cidade parecia pequena. As vidas que passavam em baixo de sua cobertura pareciam mais dinâmicas que a vida que se passava dentro da cobertura. Olhava para fora, projetava seu corpo para fora e sentia uma liberdade. Qual seria o motivo de não pular? Pensou. 

Não encontrava nenhum. O sofrimento de sua mãe? Não essa já havia morrido. O de seu pai? Esse nunca havia conhecido. O de seu último casamento? Desse já não tinha mais nem as fotos. Filhos nunca teve. Então por qual motivo não fazer isso? Parado olhando para fora, para dinâmica da vida, percebeu que não tinha nenhum motivo.

Então, como que em impulso patético passou os pés para borda que tinha entre o final da varanda e o abismo. Segurando firmemente as mãos no guarda corpo, olhou mais uma vez lá para baixo. Parecia que o abismo era dinâmico e o chamava. Uma felicidade ele tinha. Morava na cobertura ninguém conseguiria impedi-lo já que ninguém lhe via.

Olhou para baixo, e nada de filmezinho, ou resumo da vida. Apenas a dinâmica em todos os seus sentidos lhe fazia companhia e convite. Pensou pela última vez e decidiu que iria contar até quatro e iria pular. Não queria contar até três seria clichê de mais. Respirou fundo, como quem traga um charuto e começo a contar. Um... Dois...Três... Quatro.

Telefone do inferno. Isso era hora para tocar novamente? Justamente no quatro. Olhou para traz, por cima dos ombros. Nesse rápido movimento entre o quatro, o tocar e olhar lembrou-se. Havia combinado com um investidor internacional que lhe ligasse a noite, pois com o fuso horário lá já seria dia. Lembrou-se dos investimentos que iria receber, da filial que teria fora do país e da cobertura mais alta que poderia comprar.

 Foi assim, que desistiu da ideia absurda de pular e resolveu voltar com seu corpo para dentro da varanda do prédio. Enquanto se preparava para se virar, agora com muito cuidado e medo, uma fisgada lhe veio ao peito. Um dor, como se tivesse uma mão pressionando seus ossos do peito. O ar logo começou a lhe faltar e a vista começou a ficar escura. Tinha que se concentrar. “Vamos lá: um... dois... três... quatro...”

Na madrugada desta quinta feira, as quatro e quarenta e oito da madrugada, um grande empresário foi encontrado morto em seu condomínio de luxo. Devido as evidencias, os policiais afirmam que o empresário morreu após tentativa de suicido da varanda de sua cobertura. Familiares declaram luto de um dia na empresa, mas já alegam que a mesma entrará em leilão ainda esse mês.